segunda-feira, 17 de setembro de 2007

O QUE ME LEVA A PROTESTAR


Neste final de semana, surgiu uma polêmica em torno das passeatas da Zonal Sul do Rio. Alguém disse que há hipocrisia nestas manifestações, devido ao fato de muitos destes manifestantes serem usuários de drogas. Não sei com que base uma afirmação como esta foi feita. Qual a prova? Caso haja este tipo de coisa, certamente estamos diante de uma grande incoerência. Não se pode combater o mal sendo ao mesmo tempo um dos seus fomentadores. Quem compra droga colabora com toda esta desgraça da violência.

Confesso que não me senti atingido pelo comentário feito. Os protestos do Rio de Paz não ocorrem dentro do formato de uma passeata. Eles são estáticos. Trabalhamos com coisas, mais do que com gente. É mais fácil fincar cruzes e plantar rosas em Copacabana em favor da paz e da justiça do que tirar os cariocas de casa para clamar contra a violência. Em geral, só nos envolvemos no Rio de Janeiro na luta contra a barbárie quando a tragédia atinge nossa família. Fazemos parte de uma geração que um dia haverá de se envergonhar por haver lidado com tudo isto da mesma forma que o povo alemão lidou com o Nazismo na sua própria terra. Até hoje esta gente cora de vergonha quando se lembra que seus antepassados patrocinaram todo aquele horror. Só que a nossa situação é pior. Não temos um Hitler a frente do governo. Não vivemos num estado totalitário que cerceia nossa liberdade de expressão. Permanecemos calados num contexto em que vivemos num Estado democrático de direito, tendo assim, liberdade de abrir os lábios em favor da vida.

No meu caso, o que tenho a dizer, é que estou pagando um preço pessoal alto pelo meu envolvimento com tudo isto. Estava para sair do Brasil para dar seqüencia a redação da minha tese de doutorado, com tudo pago, tenho dupla cidadania, por ser cidadão europeu posso morar em qualquer nação da Comunidade Européia, minha família nunca foi atingida pela tragédia, não faço o que faço movido pela dor da perda de um parente que teve a vida interrompida pelo crime, não sou profissional de ONG e nada me obrigava a sair de casa para protestar e expressar solidariedade por parentes de vítimas que até então não conhecia, e hoje amo. O que me obrigava era um sentimento de vergonha por conviver com tudo isto sem protestar, associado a um amor, que gostaria que fosse maior, por aqueles que viveram a experiência de enterrar parentes que tiveram a vida ceifada pelo crime.

Tenho virado madrugadas inteiras trabalhando, pois é neste período do dia que montamos nosso protesto. Em Recife, na Praia da Boa Viagem, quando ficamos mil cruzes na areia, a chuva forte e o vento vinham rasgando da direção do mar. Em Brasília, na ocasião em que estendemos seis quilômetros de varal, com quinze mil lenços, lembrando a morte do mesmo número de brasileiros só neste ano, o frio da noite e o sol escaldante do dia, racharam nossos lábios e queimaram nossa pele. Em São Paulo, em cima do viaduto do Minhocão, espalhamos na madrugada, sob um frio intenso, duas mil e quinhentas mudas de plantas da Mata Atlântica, lembrando os paulistas assassinados em 2007. Em Belo Horizonte idem. Vai passar uma noite de inverno na Praça do Papa, lá no alto da Avenida Afonso Pena, fincando no gramado mil e novecentas cruzes. O dia amanhece, e com ele um batalhão de fotógrafos, cinegrafistas e jornalistas fazendo perguntas para um homem exausto e que é forçado a falar sobre aquilo que jamais estudou. Alguém disse que minha fala tem sido tensa. Que eu deveria falar com mais calma. Mas como não ficar tenso quando somos forçados a falar sobre aquilo que mal entendemos, apenas percebemos como imoral e inaceitável? Como não passar tensão na fala quando somos sabedores que temos que tomar cuidado com o que vamos falar, pois sabemos que estamos tocando no interesse dos muitos que lucram com o crime? Como não nos indignarmos e expressarmos isto no tom de voz quando vemos o espetáculo sangrento de milhares de seres humanos abatidos como animais, famílias inteiras destroçadas pela dor da saudade e uma sociedade que se reúne para sambar e cantar, mas que é incapaz de se organizar para dar um fim a esta doença social crônica?

Dizem que meus telefones estão grampeados, que a P2 (policiais que agem à paisana) tem estado nos nossos protestos (até pouco tempo atrás não sabia o que era isto. Para ser franco, acho que eles estão certos, pois poderíamos estar sendo movidos por motivos nada humanitários e democráticos), que a Polícia Federal tentou nos intimidar ao botar policiais armados, com duas viaturas, a nos fotografar no nosso último protesto em Copacabana. Meus filhos, minha esposa e eu não andamos com segurança. Temos que cruzar regularmente as vias mais violentas e menos patrulhadas da nossa cidade. Isto é vida? Não sou canditado a nada. Política para mim é administrar um hospício. Necessária, porém longe de oferecer solução plena para os problemas do homem. Depois de termos resolvido todos os nossos males sociais, continuaremos morrendo, não por bala perdida, mas pela presença do vírus da morte que está inoculado em todos os de nossa raça. Por isto sou pregador do evangelho de Cristo, sem o qual, "o homem é uma piada trágica num contexto de total absurdo cósmico". O que me move é o sonho de não tornarmos no Rio de Janeiro a vida mais difícil do que já é. Não é fácil administrar os problemas comuns da vida. Adoecemos, envelhecemos e morremos. Lidar com tudo isto sob a mira de homens armados com armas de guerra, capazes de fazer com que um tiro perfaça uma trajetória de dois quilômetros, com um índice de letalidade de mais de 90%, potentes o suficiente para furar parede de alvenaria, é o fim, é o nonsense total.

O que quero tão somente enfatizar é que tem gente indo para às ruas porque ama. Este exemplo precisa ser seguido por mais cidadãos desta cidade. Dizem que somos ingênuos. Não me canso de repetir: um milhão de ingênuos sistematicamente nas ruas do Rio de Janeiro dariam um fim a morte de tantos seres humanos. Chegou a hora da nossa sociedade emprestar força ao poder público a fim de que este faça o que precisa ser feito e que muitas vezes não consegue realizar por força da falência das nossas instituições.

O que é hipocrisia é ficarmos em casa filosofando sobre a tragédia, assistindo o faroeste pela televisão, culpando o poder público, enquanto permanecemos inertes, nos comportando como uma socieadade de desalmados, e agindo como nossos vizinhos na Venezuela, Chile e Argentina não agem mais. Esta gente, tal como franceses, americanos, ingleses, entre outros, aprendeu antes de nós que, conquistas sociais são também obtidas nas ruas.

Que saiamos do entorpecimento desta droga chamada egoísmo e façamos algo para que vidas sejam preservadas.

3 comentários:

  1. Só quando o tempo passar e a vida se tornar mais distante de nós será possível avaliarmos com profundidade o quão profundo você foi neste post. Parabéns! E que Deus renove suas forças.
    Grande abraço do admirador e de certa forma companheiro de luta.

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  2. Só Deus sabe o quanto sou grato a Ele por haver posto em minha vida, nestes dias extremamente difíceis, uma amigo e irmão tão capaz, leal e sábio como você. Espero que Deus nos use para além de tudo o que já imaginamos em nossa breve vida. Chegou a hora da nossa geração. Minha súplica é: "Eis-nos aqui, Senhor, envia-nos a nós".

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  3. Agora eu entendi melhor o que disse ontem na reunião do Rio de Paz. Tenho me dedicado tanto ao movimento que às vezes me sinto mal em deixar o meu trabalho e minha vida pessoal em segundo plano. Mas temos que fazer algo e tenho confiança de que outros se juntarão a nós e principalmente, o que mais me motiva, é ver o Reino sendo posto em prática.

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