terça-feira, 9 de janeiro de 2007

DEMOCRACIA VIVA


Nos anos subseqüentes à reforma protestante no século XVI percebeu-se que muitos, apesar de terem voltado para a verdadeira doutrina que os reformadores haviam resgatado, não voltaram para a verdadeira vida cristã.

Pregadores, portanto, se viram diante da necessidade de pregar não mais apenas sobre reforma, mas sobre avivamento também. A reforma consistindo em um retorno à verdadeira doutrina e o avivamento significando uma volta à verdadeira vida cristã. O ramo protestante do cristianismo, a partir de então, passou a ficar preocupado com o que veio a se chamar “ortodoxia morta”. O que seria isso? O conhecimento doutrinário sem a devida transformação de vida. Pessoas de posse da verdadeira doutrina em suas mentes sem, contudo, experimentar do seu poder em seu coração.

Existem nações em que há o que se poderia chamar de democracia morta. Um país cuja experiência democrática seja dessa natureza experimenta uma liberdade política que não vem acompanhada de uma ampla promoção e preservação dos direitos humanos. Trata-se de um povo que é livre, porém privado de tantos outros direitos que, tal como a liberdade, se constituem em direitos inalienáveis do ser humano. Isto é grave pelos seguintes motivos: primeiro, a própria democracia torna-se seriamente ameaçada, pois mais importante do que ser livre é viver. Um povo cuja liberdade democrática não lhe garante a preservação da própria vida sempre haverá de estar seriamente vulnerável a qualquer forma de supressão da sua própria liberdade desde que esta lhe garanta o direito à existência. Isto é lamentável, pois a democracia é a forma de governo que melhor se ajusta à duas doutrinas inegociáveis da fé cristã: a doutrina da criação e a doutrina da queda. Porque o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus é possuidor de uma dignidade intrínseca em razão da qual jamais deve ser governado sem seu consentimento. Mas, pelo fato do homem ser um ser caído não pode ser dotado de uma elevada carga de autoridade e de um poder inquestionável, pois é possível que se utilize desse mesmo poder indevido para a prática do que é perverso. A história tem provado que até agora a humanidade não encontrou nada melhor do que a democracia.

Em segundo lugar, a experiência de uma democracia sem respeito amplo à dignidade do ser humano é grave por falhar naquilo que lhe é mais essencial: a reverência à santidade da vida humana. O homem em razão da sua origem singular, conforme já foi mencionado, é possuidor de um valor incalculável em razão do qual jamais deve ter sua vida explorada, impedida de se desenvolver ou ceifada de modo impiedoso.

O Brasil precisa resgatar o conceito de democracia viva. Isto porque, após anos de conquistas democráticas, vê seu povo privado de seus direitos como cidadão e ser humano. A vida humana tem sido banalizada no nosso país. Falta justiça em nossa terra, pois nem todos estão recebendo aquilo que lhes é devido. Uns por serem privados dos seus direitos, outros por não serem julgados e condenados pela lei. Não vale a pena nesse ponto entrar em detalhes. Qualquer apresentação de uma lista de violação de direitos humanos no Brasil e crimes que não são punidos com justiça exige a redação de algo por demais extenso e que não cabe num documento como esse que se propõe a falar em linhas gerais.

A conseqüência dessa triste e espantosa constatação é a dúvida crescente no coração de muitos brasileiros quanto ao valor da democracia, um menosprezo à pátria, uma incipiente anarquia e a perda do valor da vida humana. Senão vejamos: percebe-se que muitos brasileiros estão expressando uma saudade da ditadura. É freqüente ouvir gente dizer que “no período da ditadura não era assim”. A situação criada está levando o país a esse tipo de pensamento. Um cenário perfeito para um ditador aparecer propondo “botar ordem na casa”. Collin Powell, ex-secretário de defesa norte-americano, disse recentemente que a democracia está seriamente ameaçada na América Latina devido aos altos índices de corrupção de suas instituições. Basta olharmos ao nosso redor para percebermos esse fato.

Vemos, de igual modo, milhares de brasileiros sem um mínimo amor à pátria. Sente-se que o Brasil como nação oferece pouco aos seus cidadãos. O governo é visto como contra o brasileiro na medida em que é eficaz na captação de impostos e ineficaz na distribuição de benefícios.

Em muitas das grandes cidades brasileiras há sinais claros de que a sociedade está se organizando para fazer justiça com as próprias mãos. Bairros inteiros estão se articulando para que seus moradores sejam protegidos por justiceiros que matam a revelia do estado democrático e constitucional. A probabilidade de isso se tornar praxe e desembocar numa guerra civil não deve ser menosprezada. Até quando a sociedade suportará viver em cidades onde homens sem a autorização dos poderes governamentais constituídos sentenciam e matam sem a mínima possibilidade do suposto malfeitor se defender ou ser ressocializado?

Porém, o mais dramático é perceber que o ser humano não tem mais valor no Brasil. Isto se evidencia das mais diversas formas. Desde o descaso dos nossos governantes até a indiferença de uma sociedade que já se acostumou com o menosprezo à vida. A banalização do ser humano no Brasil virou cultura. Os presídios estão superlotados com milhares vivendo em celas pútridas e prontos para, no retorno à sociedade, praticarem com nível maior de ódio os mesmo crimes que os levaram à prisão. A riqueza com a qual poderíamos oferecer condições dignas para nossos compatriotas escoa pelo já conhecido canal da corrupção. Milhares de pais de família estão privados de acesso ao trabalho, sendo assim, duramente atingidos na sua auto-estima por se sentirem inúteis e dependentes de uma filantropia que poderia ser desnecessária. Mães encontram-se com seus cabelos embranquecidos antes do tempo por terem enterrado filhos que foram assassinados ou que se tornaram inválidos por bala perdida. Vivemos num país onde o crime compensa. Criminosos que matam impiedosamente, empresários que corrompem sem remorso e políticos que saqueiam o bem público sem o mínimo senso de vergonha sabem que não serão punidos. São recursos e mais recursos legais que seus hábeis advogados usam até o crime prescrever.

Por tudo isso é que precisamos sonhar com uma democracia que nos traga além de liberdade, justiça. Uma democracia viva. Mas, por onde começar? Antropólogos, sociólogos, analistas políticos entre outros vêem a tarefa como um mega desafio cujos frutos só serão colhidos daqui a centenas de anos. Há uma ampla frente de desafios sociais que tira o fôlego de qualquer pessoa sensível e atenta aos fatos.

Porém, há cinco fatores que nos devem conduzir à esperança: primeiro, o país é extraordinariamente grande e rico. Não será por falta de recursos, sejam de que natureza forem, que ficaremos privados de viver uma vida digna. Tudo o que precisamos é fazer esta riqueza ser melhor distribuída. Segundo, sabemos da presença em nosso país de brasileiros bem preparados, decentes e que podem ajudar a descobrirmos que políticas são hoje indispensáveis para que haja justiça na nossa terra. Tudo o que precisamos fazer é exigir que aquilo que muitos sabem que deve e pode ser feito se concretize imediatamente a fim de que saiamos deste quadro aterrador. Terceiro, há milhares de brasileiros indignados e ansiosos por verem o país passar por profundas transformações sociais, especialmente no campo dos direitos humanos. Tudo o que precisamos fazer é ajudar este contingente enorme a se expressar e fazer prevalecer o anseio por justiça. Quarto, temos uma excelente constituição federal que garante a defesa de todos os direitos inalienáveis do homem, entre estes o direito à livre expressão e ao protesto. Tudo o que precisamos fazer é tornar conhecidos do povo brasileiro os canais constitucionais de expressão democrática a fim de que a sociedade exerça sua cidadania lutando pelo cumprimento da lei. Quinto, pela graça de Deus, nos últimos anos, surgiu nesse país uma multidão de homens e mulheres que conheceram o evangelho libertador do Senhor Jesus Cristo. Este povo é o segmento da sociedade brasileira mais fácil de ser mobilizado para uma efetiva campanha de participação popular na transformação social do Brasil. Esta gente se reúne pelo menos todos os domingos, tem o evangelho que aviva sua consciência e sofre as conseqüências de viver num país como o Brasil. Tudo o que precisamos fazer é chamar este povo para pela primeira vez em sua história participar de modo concreto na cura de anos e anos de injustiça e miséria de nossa pátria.

Se a igreja se organizar para essa luta chamando tantos outros brasileiros para uma participação mais ativa na vida nacional, não há dúvida que grande parte da sociedade brasileira haverá de se organizar também. Isso dará ensejo ao que de mais necessário existe para que tenhamos uma democracia viva. A participação popular. A possibilidade é mínima de uma universal defesa dos direitos humanos e o cumprimento da nossa constituição federal ocorrerem de outra forma. O nível de comprometimento de nossas instituições com o crime e a corrupção é tal que somente uma forte pressão popular para uma mudança eficaz na realidade social vigente. Não há nada que nossos governantes mais temam do que perder o eleitorado. A história recente do nosso país mostra o que pode ocorrer quando o povo participa de modo ordeiro, consciente, lúcido e democrático. Qual foi o efeito da “Campanha das diretas já?” Não vivemos hoje numa democracia que em parte se deve ao que ocorreu alguns anos atrás mediante manifestação pública? Como foi que um presidente nosso sofreu processo de impeachment?

Porém, precisamos vencer os obstáculos que têm mantido a igreja inerte e impedida de cruzar esse mar vermelho de maldade e garantir para seus filhos e o povo brasileiro uma libertação nunca antes experimentada em nossa nação. Que obstáculos são esses?

1. O ceticismo que grassa em nosso país e que entrou no coração de muitos de nós crentes que nos leva a não ver possibilidade alguma do Brasil mudar.

O quadro é dramático, todos nós sabemos. Porém, que direito tem de duvidar um povo que serve a um Deus que do nada criou os céus e a terra e que no tempo e no espaço ressuscitou seu Único Filho? Como pode descrer que esse tipo de coisa é possível um povo que sabe que pode ser sal da terra e luz do mundo? É evidente que ambas as metáforas usadas por Cristo no levam a crer que este não é apenas o chamado da igreja, mas que as coisas podem mudar. As trevas podem ser dissipadas, a vida pode ganhar sabor. E como resultado de tudo isso um mundo de gente viver melhor e o nome do nosso Pai ser glorificado.

2. O excessivo pessimismo antropológico faz com que a igreja permaneça mais cética ainda quanto à possibilidade de transformações históricas ocorrerem no Brasil.

Muitos julgam que a doutrina do pecado impede a igreja de ter esperança quanto à vida do homem sem Cristo. E de fato o homem que não nasceu de novo é um escravo do pecado e precisa de um salvador que o salve da culpa do pecado e da escravidão do pecado. Porém, encontramos na Bíblia duas doutrinas que devem ser postas lado a lado com a doutrina do pecado. As doutrinas da graça comum e da imagem e semelhança de Deus que o homem carrega. Há uma graça que Deus derrama sobre a vida como um todo que embora não salve, preserva, enriquece e embeleza a vida. Sabemos de não cristãos que têm valores cristãos em seu coração. Não que sejam cristãos, pois cristão é somente aquele que fez uma opção racional de ser conscientemente discípulo de Cristo. Ninguém é cristão inconscientemente. Porém, por causa da graça comum, os seres humanos podem almejar o que é justo e bom. Quanto a igreja já herdou de homens e mulheres que não professavam fé em Cristo? Não é fato que o povo de Israel saiu do Egito com o ouro dos egípcios? Em conexão com isso, não podemos nos esquecer do que resta da imagem e semelhança de Deus mesmo no homem caído. O ser humano, tal como o é hoje, continua tendo características do próprio Deus em sua vida. Por isso que muitas vezes cristãos vêem não cristãos amando algumas das coisas que todo e qualquer servo de Deus ama. Ambos os artigos de fé, a doutrina da graça comum e da imagem de Deus que todo homem carrega, deveriam encher-nos da esperança do mundo apreciar alguns dos valores cristãos que amamos, que nos são absolutos e que são auto-evidentes.

3. O excessivo pessimismo histórico-escatológico tem levado tantos outros a não nutrirem esperança alguma quanto a este mundo.

E de fato não se pode negar que o reino de paz, justiça e verdade é um dom de Deus. Não uma conquista humana. Uma crise repentina que irrompe e subitamente transforma o mundo, o homem e o cosmos. Não uma transformação progressiva que traz o paraíso para a terra mediante a ação política do homem. Porém, temos diante de nós o mandato cultural. O chamado solene feito por Deus aos nossos pais e consequentemente a nós de crescer e dominar a terra. O presente mundo jaz no maligno, mas isso é ensinado pelas Escrituras não para a igreja se conformar com ele e sim para transformá-lo. Obviamente sem romantismos, enquanto aguarda a irrupção do Reino de Cristo. Os que vivem de outro modo pecam por não viverem responsavelmente. Enquanto isso, colhem os frutos de seus antepassados que, por terem visto a vida de outra maneira, consagraram sua existência às causas do Reino dos Céus e deixaram para as gerações subseqüentes um mundo que embora não tenha se transformado em um Éden se tornou muito melhor do que seria caso servos de Deus fiéis tivessem cruzados os braços e irresponsavelmente aguardado o fim do mundo. Graças a Deus por um William Wilberforce, irmão nosso na fé, que na Inglaterra não deu descanso a si mesmo enquanto não terminou com a escravidão. Graças a Deus por centenas e milhares de irmãos nossos que em tempos passados lutaram pela democracia (basta estudar a história da Inglaterra, Estados Unidos e Holanda por exemplo), promoveram a educação (as universidades de Harvard e Princeton foram fundadas por crentes), produziram obras de arte (como Rembrandt, protestante holandês e Bach, compositor protestante alemão). Louvado seja o nosso Deus por Abraham Kuyper, protestante calvinista holandês que de 1901 a 1905 foi primeiro ministro da Holanda, criador da Universidade Livre de Amsterdã que em certa ocasião foi levado a dizer: "Não há uma área da vida para a qual Cristo olhe e não diga, 'Isso é meu'". A história prova que cristãos no passado deixaram rastro de vida e salvação por onde passaram, vindo assim a transformar suas nações. O protestantismo brasileiro tem negado sua herança histórica.

4. A reação ao liberalismo teológico e a teologia da libertação, com suas ênfases na ação social por parte da igreja, levaram muitos de nós para o extremo oposto da falta de compromisso com a luta pela mudança das estruturas malignas que infelicitam o homem.

Não resta dúvida que reduzir a missão da igreja à simples ação política é desconsiderar a maior necessidade do homem que é a de transcendência. Significa ser romântico quanto ao que pode nos conduzir a um mundo justo, pois só o evangelho trata da raiz de todos os males que é o pecado que habita no coração de uma raça que é capaz de matar em tempos de paz. E o pior, é fazer pouco caso do sacrifício de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo, cujo evangelho chama todos os homens a saberem que "Deus amou o mundo de tal maneira que deu seu Filho unigênito para que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna". Contudo, o Deus que nos chama para o cumprimento da grande comissão nos chama também para o cumprimento do grande mandamento. Ao lado do chamado para pregar o evangelho encontramos na Bíblia o chamado para amar de forma integral o próximo com a espécie de amor que temos por nós mesmos. E não é uma grande expressão de amor lutarmos contra o pecado sistêmico que é responsável pela desgraça de milhares? Até quando permaneceremos praticando apenas as sempre indispensáveis obras de filantropia quando poderíamos de uma só vez libertar milhares através de amplas obras de transformação das estruturas do mal?

5. O desconhecimento de um plano de ação eficaz, que não seja ingênuo e que leve o crente a ver um modo concreto de cooperar com o país é um outro obstáculo à ação.

Nosso problema não é apenas falta de amor. Sem hesitação todos podemos dizer que há uma geração de crentes desalmados que não se importa com seu semelhante. Mas, ao mesmo tempo, há pessoas que não agem por que seus pastores não lhes passam uma base teológica e intelectual para a ação. E de modo semelhante, há pessoas que, por terem nascido num país onde não há uma cultura democrática e de participação voluntária do cidadão, não sabem como agir. Por isso chegou a hora da igreja dar uma passo inicial para uma participação ativa na mudança da história de um país que pode um dia vir a ser luz para os povos.

No século VIII antes de Cristo, diz o livro do profeta Jonas que Deus levantou a este para se dirigir aos habitantes de Nínive nos seguintes termos: “Dispõe-te, vai à grande cidade de Nínive e clama contra ela, porque a sua malícia subiu até mim”. Tudo o que nós cristãos sabemos sobre Deus, nas Escrituras Sagradas, nos leva a crer que a malícia do Brasil subiu até o Criador Santo. A igreja tem que erguer sua voz sob pena de Deus ter que julgar sua igreja e a sociedade como um todo por conviver com tamanhas atrocidades de modo tão indiferente. Porém, o Deus cristão tem mais prazer na compaixão do que na destruição dos que violam sua lei. Por isso o livro do profeta Jonas termina com as palavras que deveriam afetar a todos nós que tememos e amamos a Deus: “...e não hei de eu ter compaixão da grande cidade de Nínive, em que há mais de cento e vinte mil pessoas, que não sabem discernir entre a mão direita e a mão esquerda, e também muitos animais?” Que Deus nos dê coragem para erguer a voz na nossa Nínive, o amado Brasil com seus 185 milhões de habitantes.

Antonio Carlos Costa

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