segunda-feira, 2 de abril de 2007

JOHN LOCKE E A AUTORIDADE DO ESTADO PARA LEGISLAR E PUNIR

Nesses últimos dias tem se falado bastante sobre o problema da impunidade no Brasil. A sociedade brasileira tem clamado pela condenação dos culpados pelos crimes que, devido à prática regular, têm trazido insegurança profunda a milhares de seres humanos na nossa nação. Criminosos têm passado incólumes pelos atos bárbaros que praticaram. Por tudo isto, há um consenso em nosso país de que parte dos problemas que enfrentamos no campo da segurança pública relaciona-se à não aplicação da lei ou às falhas do Código Penal Brasileiro. Cidadãos brasileiros praticam o crime na certeza de que não serão punidos. No Brasil, o crime compensa.
Os dados da justiça confirmam o que milhares de cidadãos brasileiros sabem ser um fato – no Brasil, o crime é estimulado pela frouxidão na aplicação da lei por parte do Estado. Há 550 000 mandados de prisão expedidos pela justiça brasileira que ainda não foram cumpridos. Milhares de condenados escaparam da prisão. Feras terríveis soltas por aí. Perdoem-me por falar nestes termos, mas é um fato. Outros tantos praticaram os chamados crimes hediondos e, após o cumprimento de apenas uma parte da pena, foram soltos. O rapaz que recentemente matou o músico francês numa estrada do Rio de Janeiro havia sido condenado a oito anos de prisão por homicídio. Ou seja, ele já havia matado alguém. Após o cumprimento de um sexto da pena, foi solto, matou mais sete e por fim acabou com a vida de um jovem na frente da esposa e da filha da vítima.
Tenho dito que sou um teólogo que foi arrancado do mundo da teologia e da metafísica por causa dos problemas sociais graves que temos enfrentado, especialmente o problema da letalidade. Os números são absurdos sob qualquer ponto de vista. É bem verdade que foi minha própria teologia que me empurrou para estas questões. Quem conhece o evangelho não consegue conviver com a injustiça. Pois bem, por força do meu envolvimento recente com as questões sociais do Rio de Janeiro, decidi estudar um pouco sobre política. Li algumas obras clássicas sobre direito constitucional e penal e cheguei às minhas conclusões. Em conexão a isto, pensei que seria proveitoso para meus amigos pastores, irmãos na fé e o povo brasileiro em geral, se escrevesse numa linguagem fácil, sobre a luz que os clássicos projetam sobre a realidade político-social do Brasil. Meu desejo é o de ajudar as pessoas a conhecerem um pouco daquilo que ao longo dos séculos foi estudado, provado e aplicado na vida de nações inteiras.Por onde começar, após haver lido tanta coisa boa e aplicável à realidade brasileira, foi a questão inicial que tive que responder. Bom, decidi iniciar por apresentar o ponto de vista do inglês John Locke (1632-1704), autor de uma obra de referência de direito constitucional que representou um verdadeiro golpe no Estado absolutista - Dois Tratados sobre o Governo – estabelecendo de uma vez por todas a necessidade de vivermos em governos constitucionais nos quais os direitos naturais do homem sejam respeitados. Vamos, então, a algumas afirmações centrais do grande filósofo inglês sobre o tema – a autoridade do Estado para legislar e punir.
Locke traça com muita clareza o seu ponto de vista sobre a gênese do estabelecimento do Estado: “Apenas existirá sociedade política ali onde cada um de seus membros renunciou a esse poder natural (de punir e matar), colocando-o nas mãos do corpo político em todos os casos que não o impeçam de apelar à proteção da lei por ela estabelecida. E assim, tendo sido excluído o juízo particular de cada membro individual, a comunidade passa a ser o árbitro mediante regras fixas estabelecidas, imparciais e idênticas para todas as partes, e, por meio dos homens que derivam sua autoridade da comunidade para execução dessas regras...”. Não há como mensurar o valor dessa declaração. Como nos ajuda a entender o que significa viver dentro dos limites do Estado de Direito. O ponto de vista de Locke é que existe um estado natural, que vem a ser aquele em que nos encontrávamos antes de nos organizarmos socialmente. Nesse estado, gozávamos de direitos inalienáveis que o ser humano não pode permitir que lhe roubem jamais – tais como o direito à liberdade, à propriedade e à vida. Porém, com um grande inconveniente – estávamos sujeitos à lei do mais forte. Nesse mundo sem lei, os fracos haveriam de estar sempre sujeitos ao egoísmo e à maldade dos mais fortes, o que tornaria a vida insuportável. O que então ocorreu? Um homem olhou para outro homem e disse: “Viver assim é viver no inferno. Não há segurança num mundo como esse. Nossa vida não pode estar sujeita ao arbítrio de homens maus". Daí surge a decisão de organizar a sociedade a fim de que leis fossem estabelecidas e o poder de aplicá-las posto nas mãos daqueles que haveriam de punir os transgressores da vontade geral do povo conforme explicitada nas suas leis.
A conclusão a que Locke chega lança muita luz sobre a trágica realidade da segurança pública brasileira. Ele afirma que, sendo assim, é inimaginável que pessoas tenham se organizado em sociedade para viver uma vida pior do que a que viviam no Estado natural: “...isso significaria colocarem-se em situação pior que a do estado de natureza, no qual gozavam de liberdade para defender seu direito contra as injúrias causadas por terceiros e encontravam-se em termos iguais de força para sustentá-lo, fosse ele violado por um único homem ou por muitos conjuntamente. Ao passo que, supondo que se tenha oferecido ao poder absoluto e arbitrário e à vontade de um legislador, teriam desarmado a si mesmos e armado a este, para se tornarem sua presa quando bem lhe aprouvesse”. Ora, nós brasileiros estamos desarmados. Pagamos nossos impostos. Fazemos tudo isso para que o governo, e, somente ele, use legitimamente o direito de sentenciar e punir – isto a fim de que sejamos protegidos e vejamos aquilo que nos levou a nos organizarmos como sociedade ser cumprido – a saber, a defesa do Direito à vida. Hoje, desarmados, trabalhando um terço de nossas vidas para o Estado (esta é a minha experiência devido à minha faixa salarial), vemos pessoas armadas até os dentes, ceifando a vida de milhares, através das ações mais brutais. A solução, certamente, não está na sociedade pegar em armas – o que é trágico e representaria o horror de uma guerra civil. Mas, indubitavelmente, este tipo de percepção deveria nos conduzir ao protesto contra a ruptura do Contrato Social.O que caracteriza, sendo assim, a sociedade política? Locke responde: “aqueles que estão unidos em um corpo único e têm uma lei estabelecida comum e uma judicatura à qual apelar, com autoridade para decidir sobre as controvérsias entre eles e punir os infratores, estão em sociedade civil uns com os outros”. Veja que é da essência da sociedade punir. Aliás, esta é uma tônica dos clássicos sobre política: os malfeitores precisam ser punidos.
Impressiona-me a condescendência da cultura brasileira com o crime. Fala-se no amor pelo que não teve oportunidade na vida e por isso não teve alternativa senão matar. Mas, mata quem quer. Este é um pressuposto de qualquer tratado sobre direito penal – o homem é um ser racional e moral, daí o seu comportamento ser consciente e responsável. Retira-se isto e não temos o direito de denunciar algo como o racismo ou os casos de pedofilia, por exemplo. Não negaria jamais o conceito de responsabilidade diminuída e responsabilidade aumentada. A Bíblia mesma diz: “a quem muito foi dado muito lhe será cobrado”. Mas o conceito de responsabilidade diminuída ou aumentada não destrói o conceito de responsabilidade real.
Não basta ter lei, afirma Locke. Tem que haver uma base correta para sua promulgação. Ninguém deve se sujeitar a uma lei que não foi devidamente estabelecida. A palavra técnica chama-se competência. Não se trata de habilidade para legislar, mas autoridade legal, dada pela própria sociedade: “É absolutamente necessário à lei o consentimento da sociedade”. Mas, isto deve ser feito de tal maneira que os Direitos naturais do homem sejam respeitados – estes nunca devem ser abolidos pelo Estado: “As leis da natureza não cessam na sociedade”. Estas leis estão alicerçadas na pessoa de Deus: “As regras devem estar de acordo com a vontade de Deus”. É digna de nota esta ênfase de Locke no ser de Deus. Se não há Deus, tudo é permitido.
Um ser humano instruído quanto a estas questões haveria de amar as leis do Estado de Direito: "Considero... que o poder político é o direito de editar leis... com vistas a regular e a preservar a propriedade, e de empregar a força do Estado na execução de tais leis e na defesa da sociedade política contra os danos externos, observando tão-somente o bem público". Aqui esta a base de tudo. O propósito não é o de infernizar a vida das pessoas ou cercear arbitrariamente a liberdade humana, mas definir como norma aquilo que vai representar um ganho indispensável para a vida de cada cidadão: “A lei, em sua verdadeira concepção, não é tanto uma limitação quanto a direção de um agente livre e inteligente rumo a seu interesse adequado, e não prescreve além daquilo que é para o bem geral de todos quantos lhe são sujeitos. Se estes pudessem ser mais felizes sem ela, a lei desapareceria por si mesma como coisa inútil”. Esta é a conclusão a que as gerações passadas chegaram. A lei que cerceia nossa liberdade representa uma aparente perda que proporciona um ganho incalculável na medida em que garante ao homem um caminho seguro para a vida em sociedade. “O fim da lei não é abolir ou restringir, mas conservar e ampliar a liberdade... onde não há lei, não há liberdade. A liberdade consiste em estar livre de restrições e de violência por parte de outros, o que não pode existir onde não existe lei”. Sendo o homem o lobo do homem, conforme disse Hobbes, sem as leis, pessoas de bem estariam à mercê do mais forte sempre. É interessante observar que tudo seria diferente se o homem fosse bom. Peço perdão pelo truísmo – mas parece que nos esquecemos de que, muito embora as leis não devam oprimir o homem porque ele é precioso aos olhos de Deus, elas devem existir na forma mais apta possível para dissuadir o transgressor da prática do crime, porque o homem tal como se tornou é um fracasso no campo do amor.
Todo homem deveria estar cônscio do porquê da punição ser aplicada à sua vida caso venha a transgredir: “Tudo quanto é igual deve ter a mesma medida: se não posso senão desejar receber o bem, tanto de todos os homens quanto qualquer um possa desejar para sua própria alma, como poderia eu procurar ter qualquer parte de meu desejo assim satisfeita, a menos que eu mesmo tivesse o cuidado de satisfazer o mesmo desejo, que está sem dúvida em outros homens, sendo todos de uma única e mesma natureza? ... se pratico o mal, devo esperar sofrer, por não haver razão alguma para que outros demonstrem por mim maior medida de amor do que recebem de mim...”. A sociedade deveria se levantar contra esse homem: “... e uma injúria causada a um membro de seu corpo empenha o todo na sua reparação...”. Se a falta é cometida por um governante: “Cabe ao povo um poder supremo para remover ou alterar o legislativo quando julgar que este age contrariamente à confiança nele depositada”. Aqui não há desamor. Não se trata de um espírito justiceiro. Mas trata-se, isto sim, de uma expressão de amor pela vida do inocente.
Um outro problema que temos enfrentado no Brasil foi tratado por Locke também: “Às vezes o legislativo precisa agir com rapidez, às vezes lentamente”. A sociedade não deveria evitar agir: “... quando a ocasião ou as exigências do público demandarem o aperfeiçoamento das velhas leis, a elaboração de novas ou a reparação ou prevenção de quaisquer inconvenientes que pesem ou ameacem pesar sobre o povo”. Não há dúvida de que em nome da prudência tornamos o problema do crime uma patologia social crônica na sociedade brasileira. Muitos, por não quererem levar a fama de impiedosos, ou ansiosos por serem conhecidos como os campeões dos direitos humanos, não tomam as decisões que precisam ser tomadas para que haja ordem no nosso país.
O poder que é usado sem a autoridade delegada pelo Estado deve ser combatido: “Em todos os estados e condições, o verdadeiro remédio para a força sem autoridade é opor-lhe a força". Vejam quanta luz é lançada sobre o problema do Estado paralelo que mata e sentencia à revelia do Estado de Direito. Nós nunca deveríamos tolerar uma coisa como essa! É o colapso do pacto social. A falência do acordo inicial que fizemos para vivermos juntos. Por isso, Locke afirma: “O uso da força sem autoridade põe sempre aquele que a emprega em estado de guerra, como agressor, e sujeita-o a ser tratado nos mesmos termos”.Todos devem ter consciência da lei: “Ninguém pode ser submetido a uma lei que não lhe seja promulgada”. Não tenho dúvidas de que se endurecêssemos as leis, as aplicássemos com ligeireza e as tornássemos conhecidas de todos através de muita propaganda, milhares pensariam dez vezes antes de praticar o mal. Na sua contabilidade egoísta, eles chegariam à conclusão de que o risco é grande e não vale a pena enfrentá-lo.
A sociedade jamais deve perder de vista o fato de que a lei não é um fim em si mesma. Seu propósito é o de fazer o homem feliz. Por isto, Locke ressalta perigosamente: “Esse poder de agir conforme a discrição em prol do bem público, sem a prescrição da lei e por vezes até contra ela, é o que se chama prerrogativa”. Isto não é uma usurpação: "São usurpações apenas os atos que prejudiquem ou obstruam o bem público. Por isso: “A prerrogativa não é senão o poder de fazer o bem público independentemente de regras”.
A que conclusão chegamos? Se verdades auto-evidentes como estas que acabei de mencionar, extraídas da pena do grande filósofo inglês, ditas há 400 anos aproximadamente, fossem aplicadas na vida do Estado brasileiro, a barbárie não teria criado raízes na nossa pátria. Que façamos um resgate de todas essas verdades elementares. Que chamemos a atenção das autoridades públicas para elas. Nações, no passado, inspiradas por esse tipo de literatura, saíram em busca de uma vida melhor – e a encontraram. Não falo de uma vida perfeita. Essas nações têm os seus problemas. A natureza humana não nos permite esperar o utópico – mas, pelo menos, elas não vivem com o medo com que os brasileiros vivem. Nessas nações, foi encontrada uma forma de governar na qual o valor incalculável do ser humano é respeitado.

Antônio Carlos Costa
Presidente do Rio de Paz

Um comentário:

  1. Prezado Sr. Antonio Carlos apreciei bastante esse seu artigo, que serviu de inspiração para mim, pois amanhã apresentarei um trabalho sobre a origem do estado e suas relações com o direito e a sociedade segundo Locke, e suas observações enriqueceram bastante minhas idéias. Obrigada!

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