Cheguei ontem à noite de viagem. Conforme havia dito, fomos a Brasília a fim de entregar os lenços e uma carta aos nossos parlamentares. Fiquei feliz de ver a democracia brasileira em funcionamento. Fizemos o protesto dos 15 000 lenços com a proteção da Polícia Militar de Brasília. Tivemos acesso à Câmara dos Deputados e ao Senado. Conversamos com vários deputados e senadores. Inclusive fui recebido pelo vice-presidente da república José de Alencar que, muito gentilmente cedeu um espaço de 40 minutos da sua agenda para um encontro que não estava programado. Pude falar sobre minhas preocupações com a democracia brasileira e a tragédia de milhares de famílias cujos parentes foram assassinados no ano de 2007. Quando a conversa chegou ao fim, fiz um pedido para que alguma coisa fosse feita por parte do governo federal em favor da proteção do direito à vida. Isto tudo foi na semana passada.
Ao chegar em casa na sexta-feira (1/06) recebi um telefonema de um senador, cujo nome não gostaria de identificar, que me deu a idéia de entregarmos os lenços em envelopes para nossos parlamentares. O interessante é que alguém já havia feito isto antes, sem que o soubéssemos. Contudo, houve duas coisas diferentes quanto ao que fizemos. Nós além de entregarmos os lenços em envelopes para todos os nossos parlamentares, escrevemos em cada um deles os nomes de centenas de vítimas por assassinato. Uma carta foi endereçada a cada um deles, na qual expressamos nossas inquietações com a democracia brasileira e a tragédia que tem se abatido sobre milhares de lares em nosso país, por força desse número surpreendente de homicídios praticados diariamente em todo território nacional.
A acolhida por parte dos parlamentares e a liberdade que tivemos para trabalhar denotam a presença de uma liberdade de expressão em nosso país que devemos preservar a todo custo. Fomos muito bem recebidos por dois senadores que nos deram toda a atenção (um deles chegou a me dar um livro que até agora está me parecendo muito bom), e, para nossa surpresa, o próprio presidente do senado recebeu um envelope no qual constava o lenço com o nome do menino João Hélio, cuja morte no início do ano, desencadeou um processo de participação popular no Rio de Janeiro que só terá fim quando as taxas da criminalidade descerem ao nível do decente. Se vivêssemos numa ditadura nós não teríamos feito nada disso. Nem mesmo saberíamos através da imprensa o que está acontecendo hoje no Brasil no campo da segurança pública.
Após todo o trabalho realizado em Brasília, depois de termos firmados as bases do movimento no Distrito Federal, rumamos para Recife, onde haveríamos de participar de um protesto na praia da Boa Viagem, o principal cartão postal da cidade. Esta história merece ser contada.
Pierre e eu chegamos no meio da madrugada. Nosso vôo atrasou cerca de 4 horas. Foi um bom tempo, contudo, para renovar minhas forças ouvindo música e lendo as Escrituras. O coordenador do braço do Rio de Paz em Pernambuco nos apanhou no aeroporto e juntos fomos diretos para a praia. Ao chegar lá, que cena. Crianças, jovens, adultos, homens, mulheres trabalhavam duro, no meio de um aguaceiro que caía, fincando as 1 000 cruzes na areia da praia, que simbolizavam os mais de 2000 mortos por homicídio no ano de 2007 no estado de Pernambuco.
O dia amanheceu, e, com ele, câmeras de televisão, fotógrafos, jornalistas, radialistas e parentes de vítimas apareceram de todos os lados. Mais uma vez temos que expressar nossa gratidão pelo trabalho da nossa imprensa. Ótimas perguntas foram feitas, excelentes tomadas de câmeras realizadas, fotografias de grande beleza tiradas e no dia seguinte, os telejornais de todo o país exibiam as cenas do protesto e fomos primeira página dos principais jornais do estado de Pernambuco. Obviamente, tudo isto nos deixa muito alegres. Não porque temos contado com a generosidade da mídia brasileira e internacional (o que é bom e dá visibilidade não apenas ao protesto, mas aos números da violência) desde o início do movimento, mas porque estamos erguendo a voz contra este genocídio que ocorre no nosso país, sob o olhar seco de milhares de brasileiros.
O lado triste foi o contato com os parentes das vítimas. As mesmas histórias que ouço no Rio e ouvi em Brasília, foram contadas pelos pernambucanos que apareceram na praia para se juntar a nós no protesto. Um jovem contou-me da morte recente de sua noiva, assassinada por um policial que desferiu 4 tiros na vítima. Um rapaz veio ao nosso encontro para contar o drama vivido por ele e sua família que tiveram que enterrar seu querido irmão, assassinado há 7 dias, com um tiro na cabeça, por um assaltante que decidiu matá-lo na frente da mãe da vítima, embora a mesma não tivesse expressado reação contrária alguma. Não há miséria que explique isto.
Enfim, as bases do Rio de Paz em Pernambuco estão bem sedimentadas. Creio que no próximo protesto vamos poder contar com centenas e centenas de pessoas. Após o ato público, dirigi-me para o seminário teológico onde um dia estudei a fim de revê-lo e lembrar-me dos dias em que no início da minha conversão ao cristianismo sonhava em ser uma bênção para a minha geração. Retornar àquele local, depois de 21 anos, com a família intacta e meu testemunho cristão preservado pela misericórdia de Deus, encheu-me de gratidão aos céus. Que pecado pode proporcionar mais prazer do que ser um instrumento nas mãos de Deus?
Fica aqui meus parabéns para a Igreja Presbiteriana do Pina da cidade de Recife que, sozinha, confeccionou as cruzes e as fincou nas areais da praia da Boa Viagem. Mas, não poderia deixar de mencionar o papel desempenhado pelo povo pernambucano e sua imprensa, impecáveis no seu apoio ao protesto, até mesmo porque o quadro da violência naquele estado é apavorante.
Agora estou de volta. Muita coisa para realizar. Já temos gente no Rio Grande do Sul, São Paulo, Bahia e Rio Grande do Norte querendo que realizemos protestos nestes estados. Já há alguma coisa programada para o Rio de Janeiro e outra para Brasília.
Se você me perguntasse hoje: por que você está envolvido com tudo isto? Eu te responderia: porque esta é uma exigência do evangelho, porque tenho vergonha de não fazer nada e porque não agüento mais escutar os relatos dos parentes das vítimas.