quinta-feira, 15 de fevereiro de 2007

ENVOLVENDO PESSOAS NUM SONHO CHAMADO RIO

Sou um carioca que tem um sentimento bastante ambivalente pelos seus conterrâneos. Por um lado, a pena de ver tanta gente espoliada de quase tudo que é direito inalienável do homem. São os idosos de Copacabana que se encontram na mais profunda solidão, tendo que viver com uma nostalgia incurável em apartamentos escuros, úmidos e cobertos de fuligem. São os jovens da Zona Sul e Barra da Tijuca, dependentes de drogas, sem referência de pai e mãe, entregues a uma cultura que lhes ceifa o que de melhor um ser humano pode fazer por si mesmo, que é o cultivo do seu coração e da sua mente. São os favelados obrigados a conviver com esgoto a céu aberto, ratazanas que lhes roçam os pés, mosquitos que lhes empolam a pele e uma favela que lhes foi enfiada no coração, entre tantos outros mais, cuja existência é banalizada por uma sociedade que perdeu de vista a santidade da vida humana.

Por outro lado, experimento a revolta de ver o povo que fala com meu sotaque, que como eu gosta de feijão preto, torce comigo no Maracanã, freqüenta as praias que me encantam e tem o senso de humor e a simpatia que tanto aprecio, permanecer insensível e inerte em face a todo horror infernal que se instaurou na nossa terra. Por que é imoral pedir que a música cesse após a cidade ser ferida na alma e experimentar uma catarse coletiva? Por que nos reunimos para tudo, menos para defender a justiça e o direito?

Acontece que recentemente passei por duas experiências que me encheram de esperança. A primeira foi na sexta-feira, dia 9 de fevereiro. Estávamos fazendo o segundo manifesto contra a violência na Cinelândia promovido pelo Rio de Paz. Subitamente, surge um jornalista do Jornal da Globo para me entrevistar. No meio da entrevista, tratou de me avisar que o grupo carnavalesco O Cordão do Bola Preta estava se aproximando da Cinelândia. Sendo assim, perguntou-me se eu não temia o que iria acontecer com a chegada do bloco de carnaval. A preocupação do jornalista era legítima. Nosso protesto estava sendo conduzido de modo solene, com pessoas em silêncio, vestidas de preto e velas acesas na mão. E, muitas delas evangélicas. E do outro lado, uma multidão se aproximando a sambar. Disse ao repórter que eu tinha certeza de que o bloco haveria de parar. Estava certo de que todo o clima emocional da cidade favorecia uma atitude respeitosa por parte dos foliões. Pois bem, logo após o término do nosso protesto, um senhor de aproximadamente 70 anos de idade me procurou dizendo que havia conversado com alguém do bloco que lhe garantira que eles certamente respeitariam o nosso protesto, fazendo um minuto de silêncio.

Nisto surge o bloco na Cinelândia. E nada de silêncio. Meu coração ardia de desejo de vê-los sentir o que estávamos sentindo pela cidade, participando de um momento de expressão de amor pelo Rio de Janeiro. Sendo assim, partimos na direção da turma da folia com nossas faixas e cartazes. Não havia nenhuma animosidade em nós. Somente o anseio acima expresso.
Após passar por entre centenas de pessoas, demos de cara com o condutor do caminhão de som, que com seu microfone comandava o samba. Apresentei-me e pedi-lhe que o grupo respeitasse um minuto de silêncio em respeito à dor de tantos cidadãos cariocas. Aquele homem, cujo nome desconheço, mas cuja memória jamais sairá da minha mente, parou tudo e pediu às pessoas que fizessem o almejado minuto de silêncio.

Foi surpreendente o que veio em seguida. Ele retoma a palavra e faz a seguinte afirmação: “Em 89 anos do Cordão do Bola Preta nós nunca paramos de cantar e sambar para fazer um minuto de silêncio”. Em seguida ele me passa o microfone. E lá estava eu, com o aparelho na mão, andando com o carro de som atrás de mim, conduzindo o Cordão do Bola Preta e dizendo a todos: “Não estou aqui querendo botar água no seu chope, mas hoje eu o chamo para considerar o que está acontecendo na nossa cidade, e retornar para este mesmo lugar no dia 26 de março, não para sambar, mas para lutar pela justiça e pela paz”. O lugar estava repleto. Ninguém me vaiou. Até bêbado veio me cumprimentar.

No domingo partimos para o Maracanã. Botafogo e Flamengo. Julgávamos que não podíamos deixar de aproveitar a oportunidade. Minha idéia era levar um grupo de torcedores com a camisa do Flamengo para a torcida do Botafogo e vice-versa. Liguei para o chefe da torcida Raça Rubro-Negra. Consultei-o sobre a possibilidade de levarmos faixas de protesto para o Maracanã e introduzirmos torcedores do Botafogo na torcida do Flamengo como um gesto simbólico de paz entre os homens na nossa cidade. Muito gentilmente ele permitiu que levássemos as faixas, mas julgou que não poderia me dar garantia nenhuma quanto à idéia da paz simbólica, certamente preocupado com a reação de tantos que não foram previamente informados sobre o evento.
Largada a idéia do gesto simbólico, o que fizemos foi nos dividir em dois grupos. Um foi para a torcida do Flamengo com as faixas e o outro para a torcida do Botafogo. Como bom torcedor do Botafogo, minha opção foi a de me dirigir para a torcida do meu time de coração. Assim que chegamos, pudemos ver o respeito de todos. Nenhum grito ou assovio desrespeitoso. Um rapaz que se identificou como sociólogo se aproximou de nós e disse: “Quando os vi passar com os cartazes eu disse para mim mesmo, já que eu acredito nisto tudo a mim me cabe participar”. Jornalistas pediam que erguêssemos os cartazes para sermos fotografados. Uma repórter apareceu para me entrevistar. Pude dizer-lhe que estava ali na condição de um carioca que ama a sua terra.

O momento que mais nos comoveu estava para chegar. Virei-me para o meu amigo Paulo um estudante de direito que estava comigo e lhe sugeri que fôssemos na direção da maior torcida do Botafogo, chamada Fúria Jovem, a fim de envolvermos os torcedores no momento que a cidade estava vivendo. Ao chegarmos com um cartaz escrito Rio de Paz, nos dirigimos no meio da multidão para o exato local onde ficam as pessoas que dão o toque do que vai ser cantado pelos torcedores. Ao chegar, pedi silêncio. Todos se calaram. E disse-lhes, em voz bastante alta, a fim de que todos ouvissem, que eles deveriam naquele dia não apenas torcer pelo seu clube, mas clamar pela paz, pois um menininho de 6 anos, coincidentemente torcedor do Botafogo, havia morrido brutalmente naquela semana. Cheguei a dizer que esta era a vontade de Deus! Todos nos aplaudiram. Meu irmão, que estava por perto na arquibancada sem eu saber, disse-me depois que ficou em estado de perplexidade.

Foi com emoção que, naquele dia, na hora do minuto de silêncio em memória do menino João Hélio, ouvi pela primeira vez em mais de trinta anos de Maracanã torcedores gritarem: “Justiça”. Eram os mesmos torcedores do Botafogo que puxados pelo grupo que havíamos procurado expressavam o sentimento de toda uma população.

Não há maior necessidade nestes dias do que a de nos aproximarmos do povo. Muitos ainda não perderam a alma. Precisam de esclarecimento e serem despertados para o que está acontecendo e o que a população deve fazer para que nossa amada cidade mude. Alguém já disse que todo artista tem que ir onde o povo está. Se os que se julgam alguma coisa, intelectuais, articulistas, professores universitários, atores, pastores, entre outros, conseguissem falar para esta gente numa linguagem compreensível e apaixonada, incutindo-lhes o sonho da união da cidade partida, certamente muitos haveriam de ouvir. E se envolveriam, lutando, cantando e torcendo pela paz e pela justiça.
Antônio Carlos Costa
Pastor da Igreja Presbiteriana da Barra
Presidente do Rio de Paz

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