quarta-feira, 28 de março de 2007

OS PROTESTOS FÚNEBRES DO RIO DE JANEIRO

Recentemente realizamos na praia de Copacabana um ato público referente ao índice obsceno de homicídios da nossa cidade. Nossa idéia foi tornar o nosso cartão-postal principal feio, a fim de chamarmos a atenção de uma população letárgica para algo muito mais feio – o assassinato em massa de nossos conterrâneos. Setecentos assassinatos em dois meses e meio é demais. Tudo o que queremos é ajudar a população carioca a mensurar o quadro de barbárie que se estabeleceu no nosso estado – se todos os que já foram assassinados em 2007 fossem enterrados no mesmo lugar – como seria esse cemitério? Turistas estrangeiros ficaram chocados, cariocas que passavam pelo calçadão de Copacabana choraram e tantos outros tomaram a decisão de fazer algo pela cidade.

Certamente, um turista americano, hospedado no Copacabana Palace (que por sinal teve um comportamento impecável, em nada interferindo no nosso manifesto), ao abrir as janelas do seu quarto, não se deparou com um cenário que se lhe configurou como agradável. Sei, contudo, que certamente ele pôde compreender o que estava sendo feito ao tomar conhecimento dos motivos. Eu o imagino dizendo: “por que não foi feito antes?”. É assim que os americanos sempre fizeram na sua nação. Foi desse modo que protestaram no período da guerra do Vietnam; na luta pelos direitos civis dos negros na década de sessenta mediante o trabalho do pastor batista Martin Luther King; e mais recentemente no episódio da prisão de afegãos em Guantânamo, com todos diante da Casa Branca vestidos de macacões laranja. Talvez, esse turista imaginário, deva ter comentado ao chegar ao seu país, que o carioca não apenas se reúne para sambar, mas para clamar por justiça e paz também – que a nossa alegria não é a alegria dos desalmados, alienados e descerebrados.

O terror está implantado no Rio de Janeiro. Ninguém precisa mais dizer para o carioca que sua tão estimada cidade se tornou um lugar perigoso para viver. Muitos não saem mais à noite. Carros estão sendo blindados. Ninguém sente-se mais confortável ao ver dois rapazes numa moto pararem ao lado do seu carro no sinal de trânsito. Nossos prédios viraram bunkers. Eu mesmo, não tenho mais coragem de ir ao Maracanã com meus filhos para ver meu Botafogo jogar.

O que ocorreu em Copacabana está muito longe de ser um alarme irresponsável. Nenhuma manifestação por mais funérea que seja seria capaz de traduzir a sangrenta realidade que se vive hoje no Rio. O carioca já sabe que vive no inferno. O que aconteceu de fato foi a tentativa de sensibilizar um povo que não se dá conta de que a resposta para o problema da criminalidade está nele mesmo – o crime no Rio de Janeiro não resistiria um milhão de pessoas nas ruas todo dia. A barbárie não suportaria uma sociedade organizada ao lado do poder público no combate ao desrespeito àquilo que se constitui na razão de ser da organização de um Estado – o direito à vida.

Os protestos têm assumido esta aparência lúgubre deliberadamente. Não é protesto à brasileira, com gente sambando, sorrindo e se promovendo. Não é hora de cantar e sambar. É hora de chorar. Cariocas estão ficando com os cabelos grisalhos antes do tempo por terem que enterrar seus parentes amados todos os dias – cruelmente assassinados por homens que fazem parte de uma geração que entrará para a história da cidade como a mais malvada de todas as que já passaram pela nossa terra. O protesto na Cinelândia seguiu a mesma linha do de Copacabana: Luto pelo Rio. Tristeza e engajamento. Perplexidade e esperança. Velas acesas e camisas pretas. Um turista espanhol haveria de ver a semelhança entre o que fizemos e o que eles mesmos fizeram recentemente em Madri após um atentado do ETA, pois nos inspiramos neles.

O que fazemos é o grito angustiado de homens e mulheres que vivem uma vida que por si só já é difícil para todo ser humano e que se tornou insuportável na cidade do Rio de Janeiro por causa do crime. Estamos ansiosos por ver tudo dar certo. Na nossa angústia sonhamos em poder divisar nossa geração vencendo a batalha da vida contra a morte. E, nesse sonho comum, é fato que todos temos pontos de vista diferentes quanto ao que deve ser feito. O que não pode acontecer é na hora de lidarmos com as nossas diferenças, usarmos uma espécie de tratamento que é reflexo desse colapso das relações humanas que experimentamos na nossa cidade. Podemos discordar de forma gentil. E, não apenas isto, sairmos juntos em busca de uma participação inteligente e apaixonada.

Antonio Carlos Costa
Rio de Paz

O PROTESTO PÚBLICO

Anteontem o Rio de Paz realizou seu quarto ato público de 2007. Centenas de pessoas estavam lá reunidas. Homens e mulheres completamente diferentes – havia gente do movimento estudantil brasileiro; cantores como o Tico dos Detonautas e o Gabriel Pensador; parentes de vítimas da violência; diversas ONGs; evangélicos (que foram a maioria). Houve uma ampla cobertura da imprensa, com transmissão ao vivo através de vários telejornais e manchete nos jornais da cidade do dia seguinte.

Pois bem, um dia após ao nosso ato público, uma rádio evangélica da cidade propôs no ar a resposta para a seguinte pergunta: são válidos esses protestos? Resultado final da enquete: 84% dos ouvintes responderam que não. Tudo o que fizemos é inócuo. Por julgar que a manifestação pública é parte da solução para o problema da letalidade obscena da nossa cidade, gostaria de apresentar o meu ponto de vista sobre a questão:

1. Nações desenvolvidas praticam o ato público até hoje. É assim em Washington, Paris, Madri, Roma etc. Estes povos, possuidores de uma cultura de participação popular mais desenvolvida, com todo um histórico de conquistas sociais obtidas nas ruas, conhecem a força do “poder da rua”. Você acha que um milhão de cariocas nas ruas, clamando pelo fim do tiro, não faria diferença alguma?

2. Os que afirmam que isto não dá resultado algum, não dizem o que a população deve fazer, além de ficar em casa assistindo pela televisão o faroeste. Peço que me apontem um caminho melhor, pois sendo a vida impressionantemente curta, não quero perder meu tempo com bobagem. Não me venham dizer que tenho que orar e pregar o evangelho, o que já faço há 24 anos, ao lado de tantos outros irmãos que compreendem que esta é a missão principal da igreja. Porém, respondam-me uma pergunta: quando falta água no seu condomínio, você se tranca no quarto para tão-somente orar a fim de pregar o evangelho para o síndico?

3. Em geral, pessoas somente se engajam quando a bala atinge um parente seu. Decidi não esperar a tragédia me alcançar para aprender a ser gente ou entender que a omissão de uma sociedade de bananas é responsável, em grande parte, pelo inferno que nos cerca.

Por tudo isto, vou em frente. Esperando contra a esperança. Olhando firmemente para o braço que faz com que nove planetas dêem volta em torna de uma bola de fogo suspensa no espaço, crendo que ele haverá de ser estendido a nosso favor, a fim de que nossos conterrâneos, na favela ou no asfalto, cessem de ser assassinados. Há muito tempo não durmo tão bem com a minha consciência.

Antônio Carlos Costa
Cristão – Carioca.

quinta-feira, 22 de março de 2007

OS EVANGÉLICOS E A VIOLÊNCIA NO GRANDE RIO

O Rio de Janeiro está sangrando. O sangue de milhares de cidadãos cariocas tem sido derramado todos os dias na nossa terra. Outro dia conversava com o Carlos Santiago que dirige a ONG Gabriela Sou da Paz. Ele e sua esposa Cleide, tiveram que enterrar no ano de 2003 sua filhinha Gabriela. Na época, com apenas 14 anos de idade. Perguntei-lhe: “Santiago, no meio dessa luta toda contra a impunidade, você foi ameaçado alguma vez?” Ao que ele me respondeu: “Ameaçado? Eu não estou nem aí para ameaça alguma. Perdi minha filha única. Eu não tenho mais nada a perder”. Hoje dei uma entrevista para um dos jornais da cidade. Perguntei ao repórter e o fotógrafo que o acompanhava: “O que vocês viram que mais os marcou?”. O fotógrafo apresentou um dos relatos mais tristes que pude ouvir em toda minha vida. Ele disse que outro dia participou do enterro de uma criança que havia sido morta (pareceu-me por bala perdida) numa favela de Niterói. A mãe, no seu desespero, clamava para que o filho voltasse à vida. Na sua dor incalculável, decidiu tirar a criança do caixão. Ao erguê-la, como se não bastasse o corpo inerte da pobre criança, o tecido que cobria o corpo do seu filho cai, mostrando o corte do alto do pescoço até o abdômen feito pelo legista que realizara a autópsia. A reação imediata de alguns dos presentes foi correr para recobrir o corpo da criança.

Poderíamos mencionar uma série de relatos mais de atrocidades que ocorrem todos os dias no Grande Rio. Nesses dias de envolvimento com essa causa, quanto mais mexo no tema mais assombrado fico com o que o homem tem sido capaz de fazer contra o seu semelhante na nossa terra. Não é só matar. É sacar a vida em meio à agonia da vítima, tornada sujeita aos mais diferentes suplícios. Resumo de tudo isso: o principal objetivo da organização do Estado – a preservação da vida – não tem sido alcançado pelo poder público.

O que a igreja evangélica tem a ver com tudo isso? Gostaria de apresentar os motivos pelos quais a igreja deveria começar a fazer alguma coisa:

1. A defesa do direito à vida é uma expressão da autenticidade da verdadeira fé. A fé sem obras é morta. E, nesse sentido, vale ressaltar que uma das principais obras da fé é o compromisso com a justiça. Quem diz crer e não pratica a justiça crê como os maiores facínoras que já passaram pelo solo desse planeta. Homens que diziam crer em Deus (Hitler menciona o nome de Deus várias vezes no seu Mein Kampf), mas que se comportavam como se não houvesse um Juiz justo e onipotente no universo. O que você sente quando lê o que foi relatado acima? O que você tem feito para combater esse mal?

2. Nossos irmãos na fé estão morrendo também. Crentes têm sido assaltados. Pastores têm sido mortos. Em alguns lugares da cidade é o crime organizado quem determina o horário e os dias do culto. Em muitas igrejas, as reuniões de meio de semana estão vazias porque as pessoas estão com medo de sair à noite de casa.

3. As ONGs que existem, muitas das quais lutando heroicamente pelo restabelecimento da paz, têm boas idéias, recursos e até um certo nome, mas não tem povo. Essa é a nossa diferença: somos milhares. Estamos na baixada, nos morros, na zona norte, na zona oeste, na zona sul, na Barra da Tijuca, nas praias; ou seja, no alto, em baixo, em cada esquina, buraco, loja e assim vai. E isto aos milhares. Estamos nas rádios, na televisão, na internet, nas revistas, nos jornais. Se um terço dessa gente toda não vale nada, mesmo assim somos milhares, muitos dos quais homens e mulheres que foram resgatados com braço forte pelo Deus altíssimo. Deus honrou o trabalho de muitos dos nossos pastores. Depois de anos no anonimato, orando e jejuando, gastando os melhores anos de vida na causa do evangelho, emergimos nesses dias como o fenômeno social mais extraordinário da história do Brasil. Estamos todos os domingos juntos. A facilidade de comunicação entre nós é enorme. Temos povo! O potencial transformador desse povo unido não foi explorado ainda. Imagino esse povo numa marcha com Jesus pela justiça e pela paz. Andando por onde ele andaria se estivesse entre nós no Rio de Janeiro. Sem participação popular o Rio de Janeiro não muda. E, me perdoe repetir – temos povo.

4. Surgiu recentemente um movimento na cidade chamado Rio de Paz. Eu o presido. Já organizamos dois grandes encontros na Cinelândia. Anunciamos a justiça do reino para os milhares de integrantes do bloco carnavalesco O Cordão do Bola Preta, que cantavam e dançavam no dia e na hora do nosso protesto público. Fomos para o Maracanã e fizemos pela graça de Deus uma torcida de futebol inteira gritar por justiça. Montamos um cemitério na praia de Copacabana para lembrar a todos como seria esse cemitério se todos os mortos de 2007 tivessem sido enterrados no mesmo lugar. Foi notícia no mundo todo. O movimento é da sociedade civil carioca, porém, com integrantes evangélicos e tendo sido gerado pelo sonho de evangélicos. Penso que poderíamos nos organizar em torno desse movimento. Se cada um de nós tentar fazer alguma coisa isoladamente, será só desperdício e ausência desse testemunho impressionante dado por um povo que decidiu emergir do seu sono.

No próximo dia 26 de março às 19H estaremos de novo na Cinelândia. Mais um protesto. Todos de camisa preta e vela acesa na mão. Porém, não só um protesto. Há um projeto factível nisso tudo. Em breve realizaremos o fórum sobre segurança pública convidando a participar as maiores autoridades sobre o tema. Uma pergunta norteará todo o debate: o que é necessário ser feito para que a onda de homicídio do Rio de Janeiro cesse? Com base nessas respostas, redigiremos um manifesto. Esse manifesto será entregue ao governador do Estado, numa marcha solene à noite, à luz de velas novamente. Deixaremos claro que a sociedade civil carioca está se unindo ao poder público para que juntos façamos o sangue do carioca passar a custar caro. Venha. Participe disso tudo. Sirva à sua geração. Creio sinceramente que o braço que faz agora, nesse momento, nove planetas darem volta em torno de uma bola de fogo suspensa nos espaço, estará estendido a nosso favor. Deus será glorificado através da sua e da minha vida.

Antonio Carlos Costa
Rio de Paz

quinta-feira, 15 de março de 2007

PODE O CRISTÃO LUTAR AO LADO DO NÃO-CRISTÃO?

A igreja costuma ver a sociedade em termos de – o povo de Deus e o mundo. Essa é uma diferenciação necessária. Existem, de uma certa forma, duas humanidades. O cristianismo faz uma clara divisão entre os seres humanos, baseada na relação que estes mantêm com o seu Criador. Há pessoas que não levam a Deus em consideração. Não o amam. Seus atos não visam à glória de Deus, suas mentes não se dedicam ao conhecimento de Deus, seus afetos não estão fixados em Deus, e, por isso, encontram-se mortas em seus pecados.

A fé cristã ensina com muita clareza que há um povo de propriedade exclusiva de Deus – sua igreja – a comunidade daqueles que se reconciliaram com Deus através de Cristo. O que caracteriza de modo especial essa gente é a experiência da salvação recebida gratuitamente pela fé em Cristo e a poderosa transformação de vida operada pelo Espírito Santo, mediante a qual o amor de Deus é implantado no coração dos que acolheram essa redenção.

Essas duas sociedades recebem tratamentos diferentes da parte de Deus. No seu imenso amor Ele ama a ambas, mas sorri apenas para uma. Todas suas criaturas estão sob seu amor benevolente (aquele aspecto do seu amor que o leva a tratar a todos com bondade, independentemente de sua condição moral e espiritual), mas nem todos são objetos do seu amor complacente (o amor que vem acompanhado de deleite, pelo fato do seu objeto ser possuidor de excelência). O destino dessas duas sociedades haverá de ser totalmente oposto. O cristianismo apregoa que uma separação final e definitiva ocorrerá. Os justos serão separados dos injustos. As portas do Reino se abrirão de par em par para todos aqueles que anelam por viver numa sociedade governada pela vontade amorosa e santa de Deus. De igual modo, Deus não puxará ninguém para o céu arrastando-o pelas orelhas.

Essa divisão, portanto, é boa, verdadeira e justa. É a afirmação de que há um governo moral no universo. A assunção de que para Deus há uma diferença entre ser um Adolf Hitler e ser um Francisco de Assis. Essa crença é capaz de mobilizar o povo de Deus para a dedicação ao prioritário trabalho de evangelização, pois o maior desejo de quem compreendeu de fato essa verdade é o de ver cada vez mais cidadãos da cidade dos homens fazerem parte da cidade de Deus. Não ter a cidadania celeste é a maior desventura que um ser humano pode experimentar em sua vida. Possuí-la, a maior alegria, privilégio e segurança.

O problema relativo a essa divisão que a igreja faz entre – igreja e mundo – é a falta de entendimento por parte de muitos, quanto à forma como cristãos devem se relacionar com não cristãos num Estado laico e pluralista. Esse é um fato da vida de todos os cristãos – vivemos em sociedades que não se encontram sob uma espécie de Estado teocrático cristão e nas quais temos que conviver com pessoas que possuem pontos de vista referentes à vida diferentes (num grau menor ou maior) da maneira cristã de enxergar as coisas.

Um risco que a igreja corre é o da acomodação. Permitir que o consenso esmagador determine o modo de vida dos seus membros e silenciar-se quando a maioria quer o que representa uma afronta a Deus e a dignidade humana. Um exemplo do primeiro é a aquiescência da igreja ao consumismo desenfreado, agora legitimado por uma teologia que o respalda. Um exemplo do segundo, podemos encontrar na atitude dos crentes alemães na Segunda Grande Guerra (sabemos que não todos) que anuíram ao ideário nazista (qual seria a nossa anuência ao mal nos dias de hoje?).

Outro risco grave é falta de uma interação da igreja com o restante da sociedade no combate aos males sociais que afligem a todos. Percebe-se uma atitude anti-séptica por parte de igreja quando se trata de se juntar a um não-crente visando a obtenção de uma conquista social qualquer. A igreja confunde muitas vezes co-beligerância com ecumenismo. A Bíblia aprova o primeiro e condena o segundo. Este é sempre danoso e irracional. Leva a igreja a menosprezar o que Cristo fez na cruz, ao dizer que o homem pode chegar ao céu pelos seus próprios méritos. Falando a partir do ponto de vista intelectual, um absurdo, pois duas religiões que ensinam coisas diametralmente opostas podem ambas estar erradas, mas jamais certas ao mesmo tempo. Já o princípio da co-beligerância é bíblico, pois trata-se de cristãos se unindo a não-cristãos na luta por uma causa que lhes é comun (um exemplo disso é a interação do apóstolo Paulo com não-crentes no naufrágio relatado por Lucas em Atos capítulo 27 em diante). Ora, há um mundo de coisas que queremos e reivindicamos que não-crentes querem e reivindicam também. Não estamos lidando com marcianos (embora admitamos a diferença entre cristãos e não-cristãos ), mas com pessoas que foram criadas à imagem e semelhança de Deus. O necessário combate travado contra o nazismo na Segunda Grande Guerra, por exemplo, levou para a trincheira crentes e não crentes, que lado a lado enfrentaram um inimigo que lhes era comum.

A igreja deveria estar na vanguarda das lutas sociais em nosso país. Aliás, essa é uma das suas missões, pois será que há outro povo na Terra mais apto a conhecer as intenções de Deus? será que há alguém que deveria se indignar mais do que o crente quando a vida humana é vista como espoliada daquilo que lhe é fundamental para a preservação?

Em muitas ocasiões, esse combate deve conduzir a igreja à união com pessoas que não professam sua fé a fim de enfrentar adversários que ameaçam a todos. Se faltasse água no prédio onde você mora, e um ateu juntamente com um espírita o procurassem para estar na assembléia do condomínio a fim de tratar da questão, você diria para eles – “vão embora, vocês não professam minha fé?”. Você acha que seria sensato um crente se trancar no quarto para tão somente orar pela questão?

Não há setor da sociedade mais pronto para se organizar a fim de combater o desrespeito aos direitos humanos no nosso país do que a igreja. Estamos juntos todos os domingos e temos princípios de vida que dão uma razão de ser a luta em favor do respeito à dignidade humana. Poderíamos aproveitar essa facilidade de comunicação e valores em comum, para nos organizarmos, e, em seguida, organizarmos uma fração mais ampla da sociedade como um todo, visando trazer mais justiça e paz ao nosso País. A onda de assassinatos nas nossas cidades, por exemplo, está exigindo esse tipo de participação. Tudo o que espero é que as pedras não clamem no nosso lugar; que não venhamos a reboque dos que estão do lado de fora da igreja e que conseguiram,a despeito disso, enxergar as coisas melhor do que nós – que o mundo não fique sem entender como que um povo que diz conhecer a Deus, pode ser tão alienado, arrogante e insensível.

Antonio Carlos Costa
Pastor da Igreja Presbiteriana da Barra
Presidente do Rio de Paz

terça-feira, 6 de março de 2007

O ESPÍRITO CALVINISTA E O ESPÍRITO BRASILEIRO

Há algum tempo chegou-me às mãos o livro – A Riqueza e a Pobreza das Nações, escrito por David S. Landes, professor emérito de história e economia política na Universidade de Harvard. Seu propósito ao escrever foi o de tentar responder a difícil e necessária questão: por que algumas nações são ricas e outras são pobres?

Landes, pôde perceber nas suas pesquisas, que há certa uniformidade no comportamento das nações pobres e das nações ricas. Esses destinos diferentes não podem ser atribuídos ao acaso. Existem razões para a riqueza e a pobreza dos povos. Estas explicações têm relação direta com o nível de assimilação por parte dessas mesmas nações de certas leis, que são conducentes ao desenvolvimento de um país. Ao mesmo tempo, leis que se não forem respeitadas, fazem com que países inteiros paguem um tributo social altíssimo.

Sendo assim, convém salientarmos o primeiro ponto: nessa busca por explicações com base na realidade dos fatos, o escritor da renomada universidade, encontrou um comportamento uniforme, conforme já mencionei, tanto nas nações que se tornaram ricas, quanto nas nações que se tornaram pobres. As causas são múltiplas - clima, geografia, papel do estado, educação, abertura intelectual, curiosidade, espírito empreendedor, capacidade de aperfeiçoar as coisas, iniciativa privada, entre outros tantos fatores mais. Entre eles, a religião. É este o ponto que gostaria de enfocar.

Nas suas análises comparativas entre os povos ricos e pobres, Landes encontrou diferenças em termos de prosperidade entre as próprias nações européias. Essas diferenças não fazem parte apenas dos contrastes existentes entre primeiro, segundo e terceiro mundo. Elas existem na Europa. Chamou sua atenção o fato do sul do continente europeu não ter alcançado o mesmo tipo de progresso que foi atingido pelo norte. Como explicar o atraso de Portugal e Espanha (agora minimizado pela inclusão de ambos na União Européia)? Nações que um dia foram as donas dos oceanos. Exploradoras de territórios imensos no mundo todo. Não se curvando a tese de que o clima representa a melhor explicação (já que há diferenças climáticas entre ambas as regiões, o norte mais frio do que o sul) – “Esses estereótipos contêm um grama de verdade e um quilo de pensamento indolente”, Landes acredita que a melhor solução para questão tem relação com a emergência do protestantismo, especialmente o de linha calvinista na Europa setentrional.

O escritor americano começa por mencionar a explicação dada pelo cientista social alemão Max Weber. Ao publicar em 1904-1905 – A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, Weber expressou o seguinte ponto de vista, apresentado resumidamente por Landes: “o protestantismo – mais especificamente, suas ramificações calvinistas – promoveu a ascensão do capitalismo, ao definir e sancionar uma ética de comportamento cotidiano que conduzia ao sucesso nos negócios”. Para Landes, o calvinismo produziu um código secular de comportamento: trabalho perseverante, honestidade, seriedade, uso parcimonioso do dinheiro e do tempo (ambos concedidos por Deus) – “Todos esses valores ajudam os negócios e a acumulação de capital, mas Weber sublinhou que o bom calvinista não visa às riquezas... a tese de Weber é que o protestantismo produziu um novo tipo de homem de negócios, um diferente tipo de pessoa, que tinha por objetivo viver e trabalhar de um certo modo. Esse modo é que era importante e a riqueza seria, quando muito, um subproduto”.

Landes menciona como exemplo, as atitudes protestante e católica em relação aos jogos de azar no começo do período moderno: “Ambas o condenaram, mas os católicos condenaram-nos porque uma pessoa poderia perder (perderia) e nenhuma pessoa responsável comprometeria seu bem-estar e o de outros dessa maneira. Os protestantes, por outro lado, condenaram os jogos porque uma pessoa poderia ganhar, e isso seria ruim para o seu caráter”. Ele traz a memória de todos, o ponto de vista sobre a ética puritana do historiador social inglês R. H. Tawney no seu livro – Religião e Ascensão do Capitalismo: “Esta protegeu os comerciantes e fabricantes contra as pedras e flechas de desprezo das classes altas e seus códigos de bom-tom. Deu-lhes um sentimento de dignidade e virtude, um escudo num mundo de preconceitos anticomerciais. E assim, não cedendo a tentação do ócio aristocrático, os bons calvinistas mantiveram-se fiéis à sua tarefa de geração para geração, acumulando riqueza e experiência pelo caminho”.

Já o sociólogo Robert K. Merton, argumentou a favor da existência de um vínculo direto entre o protestantismo e o nascimento da ciência moderna. Landes lembra que não foi Merton o primeiro a defender essa tese – “No século XIX, Alphonse de Candolle, de uma família huguenote de Genebra, procedeu a um levantamento segundo o qual dos 92 membros estrangeiros eleitos para a Academia de Ciências francesa no período de 1666-1866, 71 eram protestantes, 16 católicos e os cinco restantes judeus ou de filiação religiosa indeterminada – isto numa população de 107 milhões de católicos e 68 milhões de protestantes fora da França. Uma contagem semelhante de membros estrangeiros da Royal Society de Londres em 1829 e 1869 mostrou igual número de católicos e protestantes num conjunto em que os católicos superavam numericamente os protestantes em mais de três para um”.

Para os que julgam as teses de Weber implausíveis ou inaceitáveis, Landes apela para os dados empíricos sacados da história: “... a documentação nos mostra que mercadores e fabricantes protestantes desempenharam um papel destacado no comércio, nos negócios bancários e na manufatura. Nos centros fabris (fabriques) da França e da Alemanha Ocidental, os protestantes eram tipicamente os empregadores, e os católicos os empregados. Na Suíça, os cantões protestantes eram os centros da indústria manufatureira de exportação (relógios, maquinaria, têxteis); os católicos eram primordialmente agrícolas. Na Inglaterra, que em fins do século XVI era preponderantemente protestante, os dissidentes (leia-se calvinistas) eram ativos e influentes, de um modo desproporcional, nas industrias fabris e nas forjas da nascente Revolução Industrial”.

Landes não se contenta apenas com a apresentação das provas empíricas. Ele parte para o nível teórico também: “A questão essencial consiste, com efeito, na criação de um novo tipo de homem – racional, metódico, diligente, produtivo. Essas virtudes, embora nada tivessem de novas, tampouco se podia dizer que fossem moeda corrente. O protestantismo generalizou-as entre os seus adeptos, que julgavam uns aos outros pela conformidade a esses padrões... características especiais dos protestantes refletem e conformam essa ligação... a ênfase sobre a instrução e a cultura, tanto para moças quanto para rapazes. Isso era um subproduto da leitura da Bíblia. Esperava-se que os bons protestantes lessem a Sagrada Escritura para si mesmos. (À guisa de contraste, os católicos foram catequizados mas não tinham que ler, e eram explicitamente desencorajados a ler a Bíblia.) O resultado: maior número de pessoas instruídas e um maior pool de candidatos para a escolaridade de níveis superiores; também maior garantia de continuidade de instrução de geração para geração. Mães instruídas fazem a diferença”.

Foi impossível continuar a leitura do livro sem parar para pensar no Brasil. E temos que admitir – parar para pensar sobre o Brasil é parar para pensar sobre a história de um dos maiores desperdícios que a humanidade já viu. Desperdício de terra, beleza natural, circunstâncias históricas favoráveis e patrimônio humano. Sim, o Brasil é um desperdício. Desperdício de terra. Poluímos nossos rios, sujamos nossas praias, devastamos nossas florestas. Desperdício de beleza natural. Parte do que era belo se tornou feio ao ter contato com o povo brasileiro. Nossas cidades não estão à altura da formosura da natureza que nos cerca. São cidades sujas, sem graça, mal planejadas e cercadas de favelas. Desperdício de circunstâncias históricas favoráveis. Não passamos por nenhuma tragédia natural, nossa nação jamais soube o que significa ter que se erguer da devastação de uma guerra, nossos campos jamais se recusaram dar-nos o pão. Encontramos, contudo, pessoas vivendo na miséria no Brasil. A nação onde mais se mata, onde pune-se menos. A primeira em defasagem social. Não há país com tamanho fosso entre ricos e pobres. Desperdício de patrimônio humano. Somos milhões. Resultado de uma história da miscigenação racial das mais lindas da trajetória humana. Alemães, italianos, japoneses, portugueses, árabes, índios, africanos, poloneses, todos morando num mesmo país, falando uma mesma língua, casando uns com os outros e trazendo para nosso país toda sua riqueza genética e cultural. Mas, percebe-se que no contato com a nossa terra as coisas parecem se atrofiar. São milhões de brasileiros que recusam-se a estudar. Uma perda irreparável de neurônios. Domesticados por uma cultura que ensina a mentir, a ser impontual, a deixar para amanhã o que deve ser feito hoje, a trabalhar de modo desleixado, entre tantas mazelas mais que envergonham, ou deveriam envergonhar a todos nós.

Jogamos a culpa na genética (como se fôssemos uma sub-raça), na globalização (como se ela fosse responsável pelo desabamento do metrô de São Paulo e da marquise de um hotel em Copacabana), nos países desenvolvidos (quando vemos a Coréia do Sul e o Chile não precisando se fazer valer dessa espécie de racionalização), na colonização (como se os portugueses tivessem deixado de conduzir os rumos do país no mês passado), em karma (crença infeliz, que nos leva a dizer que nessa vida pagamos pelos erros praticados numa vida da qual não nos lembramos). Em suma, nos recusamos a encarar nossas deformidades. Julgamo-nos o povo gente boa, apesar de sermos os campeões mundiais em assassinato e disparidade social.

Não há como deixar de pensar na igreja. Os evangélicos. Povo ao qual pertenço e que Deus usou para levar-me a Cristo. Por que a igreja evangélica brasileira tem se demonstrado incapaz de salvar o brasileiro do Brasil? Qual a razão de vermos em nossas igrejas pessoas mais brasileiras do que cristãs? Onde estão os resultados históricos que costumam fazer parte da passagem do protestantismo por uma nação?
Quero dizer que tenho esperança. Eu não estou aqui para reclamar da vida. Não suporto a crítica que não vem acompanhada de resposta. Não é da essência da fé cristã fazer apresentação de problemas sem apresentar esperança. Minha esperança consiste no sonho de um dia ver o calvinismo - "o cristianismo que se achou" - entrar no sangue do povo evangélico brasileiro. Nesse dia a igreja haverá de ser salva do Brasil e o Brasil salvo de si mesmo.
Pr. Antônio Carlos Costa